A Enciclopédia da Vida

Edward O. Wilson*
A biologia comparada, cruzando a divisa digital, entrou numa revolução ainda não largamente anunciada: a exploração e a análise da biodiversidade num ritmo vastamente acelerado.
Imagine uma página eletrônica para cada espécie de organismo na Terra, disponível em qualquer lugar através de um simples comando de acesso. A página contém o nome científico das espécies, uma apresentação ilustrada ou genômica do espécime de primeiro tipo no qual o nome foi baseado e um resumo de suas características diagnosticadas. A página abre diretamente do próprio site, ou através de links de outras fontes de dados, como a ARKive, a Ecoport e a GenBank. Ela comprime um resumo de tudo o que se sabe sobre o genoma das espécies, o proteoma, a distribuição geográfica, a posição filogenética, o hábitat, as relações ecológicas e, não menos importante, sua importância prática percebida para a Humanidade.
A página é indefinidamente expansível. Seu conteúdo é continuamente revisto e atualizado com novas informações. Todas as páginas juntas formam uma enciclopédia, cujo conteúdo é a totalidade da biologia comparada. Existem razões obrigatórias para construir-se tal enciclopédia de todas as espécies. Nem de longe é a força heurística da biologia como um todo.
Como o censo das espécies da Terra chega próximo da exaustão e como suas páginas individuais comportam todos os níveis de organizações biológicas, do gene ao ecossistema, novas classes de fenômenos aparecerão num ritmo acelerado. Suas importâncias não podem ser imaginadas com o nosso escasso conhecimento da biosfera e das espécies que a compõem. Quem pode imaginar o que os micoplasmas (mycoplasmas), os colemas (collembolans), os tardígrados (tardigrades) e outros grupos ainda não conhecidos podem nos ensinar? Enquanto a cobertura das espécies aumenta, buracos no conhecimento biológico aparecerão como espaços em branco num mapa. Eles se tornarão destinos ao redor dos quais os pesquisadores irão gravitar.
Pela primeira vez, as biotas de um ecossistema inteiro podem ser recenseadas por completo. Os microorganismos desconhecidos e os menores invertebrados, os quais ainda abarcam a maioria das espécies que ainda não têm nomes, serão revelados. Apenas com tal conhecimento enciclopédico, a ecologia poderá amadurecer como ciência e adquirir poder de predição espécie por espécie, e, daí, ecossistema por ecossistema. Como resultado disso, o impacto humano no meio ambiente vivo poderia ser facilmente acessado com a maior quantidade de detalhes muito mais confiáveis do que é possível hoje em dia.
Hoje, por exemplo, nos baseamos, para as estimativas da extinção das espécies, em dados de grupos dispersos de taxonomia mais bem conhecida, inclusive as plantas florais, os vertebrados de terra e de água fresca e muito poucos invertebrados como as borboletas e os moluscos. Essa taxa contém apenas um quarto das espécies conhecidas na Terra e, quase certo, uma fração muito menor daquelas ainda desconhecidas. Amanhã, outros invertebrados, incluindo os insetos e os nematóceros, assim como os fungos e quase todos os microorganismos, que juntos formam a vasta maioria das espécies da Terra e as trilhas essenciais dos ciclos de energia e materiais, podem também ser acessadas.
A enciclopédia de todas as espécies servirá ao bem-estar humano de maneira mais imediatamente prática. As descobertas de espécies de plantas selvagens adaptáveis à agricultura, de novos genes para o realce da produtividade da colheita e de novas classes de farmacêuticos podem ser aceleradas. As insurreições de plantas patogênicas e nocivas e de animais invasivos serão melhores antecipadas e advertidas. Nunca mais, com o conhecimento mais completo de tal extensão, precisaremos deixar passar tantas oportunidades de ouro no mundo vivo ao redor de nós, ou de ficar tão freqüentemente surpresos com o repentino aparecimento de elementos destrutivos que nascem dele. Uma enciclopédia da vida de todas as espécies é logicamente inevitável se a consolidação do conhecimento biológico for urgentemente necessária. Em seus estágios iniciais, já emergindo, ela forma uma matriz através da qual os estudos comparativos são rapidamente organizados. O processo acelerará como os procedimentos de taxonomia padrões, ainda, em sua maioria, dependentes de exames repetitivos de espécimes de tipos e literatura impressa, e recolocados com fotografia digital de alta resolução, seqüenciamento de ácido nucléico e publicação na Internet.
Com uma maior documentação organizada nas páginas dos espécimes, novas linhas de pesquisa se abrirão num ritmo mais rápido. Espécies modelo para laboratório e pesquisa de campo podem ser mais facilmente encontradas – obediente ao princípio de que para cada problema da biologia existe uma espécie ideal para sua solução. Uma enciclopédia que cresce e é estruturada por espécies que podem ser acessadas através de simples comandos, facilitará a navegação através dos imensos bancos de dados biológicos. Auxiliados por ferramentas de busca de computadores, os modelos podem ser encontrados sem gastar muito esforço ou tempo. Princípios e teorias podem ser elaborados, desconstruídos e reconstruídos com poder e transparência inéditos.
Ao final do dia e num nível mais profundo, a enciclopédia de todas as espécies irá transformar a natureza em biologia. A razão para isso é que a biologia é primeiramente uma ciência descritiva. Embora dependa de uma base sólida de física e de química para suas explicações funcionais e da teoria de seleção natural para suas explicações evolucionárias, ela é definida unicamente pela particularidade de seus elementos. Cada espécie constitui um pequeno universo em si mesma, desde seu código genético até sua anatomia, seu comportamento, seu ciclo de vida e seu papel no meio ambiente, um sistema que se perpetua por si mesmo criado através de uma complicada historia evolucionária quase inimaginável. Cada espécie merece carreiras de estudo e celebrações científicas de historiadores e poetas. Nada do tipo pode ser dito (com o risco que afirmar o óbvio) para cada próton ou molécula inorgânica.
A taxonomia, o estudo e prática científica de classificação, é fundamental para a enciclopédia de todas as espécies. Entretanto, ela ainda é uma das disciplinas menos incentivadas e de desenvolvimento biológico mais fraco. Ao redor do mundo, menos de 6000 biólogos trabalham com ela. A maioria das pessoas fica surpresa ao aprender que a maioria das biodiversidades é ainda inteiramente desconhecida. Eles presumem que a taxonomia já está completa e, daí, qualquer nova espécie descoberta é merecedora de ser uma notícia de destaque. A verdade é que nós não sabemos quantas espécies de organismos existem na Terra até mesmo na mais próxima ordem de magnitude.
Esses nomes científicos em latim dados e formalmente diagnosticados são contados como algo entre 1.5 e 1.8 milhões de nomes, levando em consideração que a literatura taxonômica ainda não contabilizou exatamente este número. As estimativas do número cheio, conhecimento ainda desconhecido, vacilam largamente de acordo com o método. Como foi resumido na Global Biodiversity Assessment, de 1995, a conta varia de um improvável 3.6 milhões a um igualmente improvável número de 100 milhões ou mais. A adivinhação mais comum é a de 10 milhões.
Quanto menores os organismos, mais pobre é o conhecimento sobre o grupo ao qual pertencem. Em média, 69.000 espécies de fungos foram distinguidos e nomeados, porém é conhecida a existência de mais de 1.6 milhões. Desde as minhocas nematóceras, até quatro entre cinco animais da Terra (e, é dito, que é tão abundante que se toda a matéria sólida da superfície desaparecesse, seu contorno invisível poderia ser visto nos nematóceros), em média 15.000 espécies são conhecidas, mas milhões de outras esperam ser descobertas. Os nematóceros, por sua vez, são menos numerosos em diversidade do que as bactérias e as arquebactérias, o buraco negro dos sistemas biológicos. Embora apenas 6.000 tenham sido formalmente reconhecidas, aproximadamente esse mesmo número, quase completamente novo à ciência, pode ser encontrado em apenas poucos gramas de rico solo florestal. Nossa ignorância sobre esses microorganismos é sintetizado pela bactéria do gênero Prochlorococcus, afirmativamente o organismo mais abundante e responsável por uma larga parcela da produção orgânica do oceano, que fora desconhecida até 1988. As células do Prochlorococcus flutuam passivamente em mar aberto à quantidade de 70 mil a 200 mil/mm, se multiplicando com a energia solar que é capturada. Eles iludiram o conhecimento por tanto tempo por causa de seu tamanho extremamente pequeno. Representando um pequeno grupo chamado fitoplâncton, elas são muito menores do que as bactérias convencionais e dificilmente visíveis até com a mais alta magnificência ótica. Até os organismos maiores esperam por uma contagem completa. O número global das espécies anfíbias cresceu nos últimos 15 anos em mais de 1/3, de 4.000 a 5.400. As plantas florais, através dos séculos como a mira favorita dos naturalistas, poderiam crescer do atual número de 272.000 para até 300.000: a cada ano, mais ou menos 2.000 novas espécies são adicionadas à lista mundial do Índice Kewensis.
Como poderia se apresentar melhor a fundação taxonômica? Em Outubro do ano passado, a Universidade de Harvard realizou um encontro de cúpula com líderes de organizações dedicadas ao estudo dos levantamentos taxonômicos, numa escala global ou continental. Seu objetivo era encontrar uma forma de completar um censo mundial num determinado período. Estavam incluí¬das a África Biodiversity Foundation (com escritório central em Bulawayo), o Census of Marine Life (Nova Iorque), a Global Biodiversity Information Facility (Copenhagen), a Global Taxonomy Initiative of the Convention on Biological Diversity (Nova Iorque), o Integrated Taxonomic Information System (Washington, DC) e a NatureServe (Arlington, Virginia).

Também presentes estavam cientistas representantes da maioria das coleções da América Latina e do Norte, assim como especialistas de tecnologia bioinformática. O encontro de Cúpula dos taxonomistas foi patrocinado pela ALL Species Foundation, recentemente formada como um facilitador de todo o esforço conjunto. Seu objetivo é prover uma carteira de compensação para as iniciativas da linha de frente, assistí-las em suas iniciativas de financiamento e desenvolvimento da bioinformática, iniciar novos projetos e monitorar e reportar progressos na empresa conjunta num ritmo contínuo.
Os assistentes da ALL Species Summit concordam que um completo, ou mais realisticamente, um quase completo censo da biodiversidade global é tecnicamente exeqüível dentro de 25 anos. A magnitude da tarefa pode ser visualizada como o seguinte: visto que 10 por cento de (numa estimativa de estudos) 10 a 20 milhões de espécies da Terra foram diagnosticadas nos primeiros 250 anos, começando pelo Carolus Linnaeus Systema Naturae em meados do Século 18, é agora proposto completar-se os 90 por cento restantes em um décimo do tempo. Uma fé na corrida pelo término desse trabalho é produzida pelas revoluções mais avançadas que vêm ocorrendo na bioinformática e no estudo do genoma, que, juntos, oferecem os meios para transformarem-se os métodos tradicionais de taxonomia. Os antigos métodos, que ainda prevalecem, consomem muito tempo e trabalho. Para se completar uma análise taxonômica de um gênero ou uma classificação de ordem mais alta, requer o exame dos tipos primários de cada espécie, subespécies, e variações, que estão tipicamente espalhados através dos museus da América do Norte e da Europa e freqüentemente em outros países também. O sistematista deve conduzir a compridas viagens para examinar-se todos os espécimes, ou até mesmo tê-los recebidos em mãos ou através do correio, um passo arriscado que nem todos os curadores desejam correr. O sistematista também deve ter acesso a uma ampla série de livros e jornais, muitos dos quais são antigos e raros. Como resultado, a tradição da sistemática desde Lineu tem sido essa da perícia arcaica praticada por grupos de especialistas que trabalham com grupos de organismos para os quais devotam suas vidas profissionais.
Com a nova tecnologia, a cultura taxonômica do Século 19 começou a mudar. Pela primeira vez, espécimes de tipos poderão ser ilustrados por fotografias de alta resolução digital, cujos detalhes anatômicos e profundidade de campo estão além desses vistos nos espécimes visualizados por microscópios leves. As fotografias podem ser publicadas na internet. Quando todos os tipos primários de cada grupo, digamos brocas da família Curculioidae ou gramíneas da família Gramineae, estiverem fotografadas digitalmente e na Internet, elas poderão ser acessadas por qualquer pessoa e de qualquer lugar. Quando as diagnoses originais da literatura impressa forem adicionadas, peritos poderão proceder com revisões em velocidade e economia muito maior do que a desfrutada na era pré-digital. Em um passo, a prática da taxonomia será globalizada e democratizada e, em certo sentido, os espécimes de tipo serão repatriadas a seus países de origem.
Um programa assim, já finalizado, é o “herbário virtual” do Jardim Botânico de Nova Iorque . Quase toda sua coleção inteira de alguns tipos de espécimes de plantas vasculares, representando 90.000 espécies, está agora concluída. Iniciativas similares estão a caminho nas coleções de insetos da Academia de Ciências Naturais da Filadélfia e no Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard. Com mais e mais projetos semelhantes finalizados, coleção por coleção de todas as partes do globo, a iconografia global se juntará como peças que se encaixam num mosaico. O resultado será a requerida fundação para uma exploração veloz da biodiversidade da Terra e o crescimento acompanhado da enciclopédia de todas as espécies.

A construção da base da completa taxonomia não será, entretanto, apenas a compilação suave das espécies. A magnitude da biodiversidade e o emaranhamento do processo evolutivo que o gerou ainda apresentam problemas formidáveis. Em primeiro lugar, existe a dificuldade de classificar-se os microorganismos e muitos dos menores invertebrados de corpo mole, muitos de cuja espécie só podem ser confiavelmente separados através da diagnose molecular.

A dificuldade colocou os inventários de todas as espécies perdidos em algum lugar do passado. Entretanto, sua solução aparece bem próxima agora que ocorrem rápidos avanços na genômica. Já hoje, por exemplo, dezenas de milhares de espécies da maioria dos domínios de organismos vêm sendo, pelo menos parcialmente, seqüenciados por uma pequena subunidade ribossomal de gens RNA. Por volta de abril de 2002, o último dia que houve uma contagem, os genomas de não menos de 61 espécies de bactérias tinham sido completamente seqüenciadas.
Com a aceleração do processo e com o custo caindo, os dados genômicos se tornarão padrão para a taxonomia, assim como a reconstrução filogenética, entre todos os grupos de organismos. Uma segunda barreira para o inventário de todas as espécies é a incongruência do conceito de espécies entre os maiores grupos. A definição clássica das espécies em organismos de reprodução sexual é uma piscina de gens fechada – uma população de indivíduos capazes de procriar-se livremente sob condições naturais. Esse critério funciona razoavelmente bem para a maioria dos animais e plantas, mas cria dificuldades em alguns grupos de plantas onde a hibridização é extensa, mas constitui uma pequena parte no todo. E falha logicamente, é claro, nas muitas populações que não praticam a reprodução sexual. O valor da definição clássica de reprodução isolada é ainda desconhecido na grandeza de microorganismos, onde espécies podem ter que ser delineadas arbitrariamente por uma porcentagem cortada de bases pareadas divididas por populações ou algum outro critério genético.
O problema das espécies não pode ser fundado em avançado por nenhuma fórmula ou legislação. Ele deve ser quebrado ao passo da evolução da iniciativa do Todas as espécies, iluminando as particularidades das variações em nível de espécies, de um grupo filogenético a outro. À medida que esse conhecimento for crescendo, a dificuldade da definição das espécies se cambiará em estudos mais profundos de como a diversidade em nível de espécie nasce, grupo por grupo. Enquanto isso, o processo de recenseamento pode e deve proceder com as melhores ferramentas e conceitos de espécies à mão. A resolução do problema das espécies será um de seus importantes resultados.
Os problemas inerentes à bioinformática são também formidáveis. Enquanto os motores de busca eletrônicos são desenvolvidos, eles devem ser feitos interoperáveis com e entre os grupos filogenéticos. Eles devem ter controle de qualidade, executados de preferência pelos comitês de publicação, comparáveis ao quadro de editores à impressão de jornais. Eles precisam ser criados, como no caso do GenBank, para prover acesso público e de graça. Ao ingressar-se na nação bioinformática, os taxonomistas e os enciclopedistas precisam voltar-se para e superar o crescente problema de sobrecarga de informações, que já atormentam esses que gerenciam as análises micro-seriais de DNA, a agenda de linhas aéreas e contas de banco. Finalmente, com os atuais disquetes começando a perder dados já há uma década e até os discos óticos em menos de um século, melhoras na longevidade e nos métodos de transferência de formato será uma prioridade nas tecnologias adotadas. Esses obstáculos são desencorajadores, mas eles são de uma natureza técnica eminentemente vulnerável à ingenuidade humana. Para superá-los, e desta forma completar a grande empresa Linnaean, criando a base da enciclopédia de todas as espécies, garantirá o lugar direito da biologia comparada com a corrente principal da ciência.
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Edward O. Wilson é biólogo, conhecido internacionalmente por suas pesquisas nas áreas de ecologia, evolução e sociobiologia. É autor de Sociobiology: The New Synthesis (1975).
Publicado originalmente na revista Eco.21, ed. 128, julho 2007.